Demorou, mas o sonho se tornou realidade.
Desde a década de 1980, com o grande sucesso da missão do satélite infravermelho IRAS, os astrônomos começaram a sonhar com um instrumento que marcaria a história da humanidade.
A história é mais ou menos assim.
O satélite IRAS era um telescópio espacial destinado a observar em comprimentos de onda no infravermelho que são impossíveis de ser observados na Terra por causa da absorção desta radiação pela atmosfera. A missão consistia em mapear o céu todo em 12, 25, 60 e 100 microns. OK, observações em 12 e 25 microns podem ser feitas na superfície da Terra, mas a um custo (em termos de tempo de telescópio) proibitivo para um mapeamento desses.
A missão IRAS foi um grande sucesso, até hoje surgem publicações envolvendo seus dados. O IRAS abriu novas frentes de estudos para a astronomia moderna. Uma dessas frentes foi a necessidade de avançar as pesquisas em comprimentos de onda maiores (intermediários, entre o infravermelho e o rádio) e com resolução melhor. O IRAS, apesar de seu sucesso retumbante, carecia de uma boa resolução espacial. Em outras palavras, galáxias inteiras cabiam em um ou dois pixels da imagem.
Assim começou a ser desenhado um observatório para operar em comprimentos de onda da ordem de milímetros. Nesse comprimento de onda, a atmosfera não dá moleza. Ela absorve radiação, bem como deforma as imagens de maneira implacável. A primeira tarefa, então, foi discutir um local afastado, seco e frio; resumindo, um deserto bem alto. Depois de alguma discussão e pesquisas de campo, decidiu-se por um sítio no Cerro Chajnantor, em pleno deserto do Atacama, Chile. Esse cerro está a meros 5.000 metros de altitude, onde a pressão atmosférica é metade da pressão ao nível do mar. Com isso, a coluna de vapor d’água sobre o observatório é muito menor, resultando em uma absorção muito menor também. A essa altitude, a temperatura também não sobe muito, garantindo que a atmosfera sofra pouca turbulência.
Ao mesmo tempo em que se discutia o melhor local, o observatório foi sendo planejado. Nesse comprimento de onda, a radiação incidente é coletada por radiotelescópios, que funcionam como telescópios ópticos. Mas esse precisava ser o melhor observatório jamais feito, por isso não seria apenas uma antena (como é chamado popularmente um radiotelescópio) mas sim um conjunto de 66 antenas operadas simultaneamente. Deste total, 54 têm 12 metros de diâmetro e as restantes têm 7 metros de diâmetro. Entretanto, essas antenas não são fixas, elas podem ser transportadas pelo sítio do observatório, espalhadas por quase 16 km no terreno do observatório. Combinando-se os dados coletados simultaneamente de todas elas, pode-se formar uma imagem tão boa quanto uma obtida por uma antena única de 16 km de diâmetro!
Com isso, formou-se o projeto Alma, que significa Grande Conjunto Milimétrico/Submilimétrico do Atacama, em inglês. Os investimentos giram em torno de 1,5 bilhão de dólares, o maior investimento em astronomia já feito até hoje. Um volume tão alto de recursos só poderia sair através de um consórcio internacional, envolvendo o ESO (Observatório Austral Europeu), o NRAO (Observatório Nacional de Radioastronomia – EUA) e o NAOJ (Observatório Astronômico Nacional do Japão). A distribuição de tempo ficou em 37,5% entre ESO e NRAO, 25% para o NAOJ e 10% para o Chile por sediar o observatório. Por incrível que pareça, o Brasil tem boas chances de usar esse observatório e, de fato, já o fez. Recentemente o Brasil foi convidado a integrar o ESO, em um acordo que ainda falta ser ratificado pelo Congresso Nacional e somos considerados europeus. Convidado a assistir o evento, a minha credencial diz: Cássio Barbosa – Europa!
Amanhã, dia 14 de março haverá a inauguração oficial com a presença do presidente do Chile e representantes dos países envolvidos. Esse será um evento histórico, pois o observatório e seu conjunto de antenas já é considerado um patrimônio da humanidade, pela mobilização de tantos países, tantos recursos e tanto esforço. Construir um observatório desses não é nada simples, imagine então a 5 mil metros de atitude!
Trata-se de um projeto envolvendo 20 países, mais de US$ 1 bilhão e desafios tecnológicos incríveis.
Para começar, imagine trabalhar – pesado – a uma altitude de 5 mil metros. Com temperaturas sempre próximas a zero. Nessa altitude, o ar se torna rarefeito – a pressão atmosférica é a metade da verificada ao nível do mar. Com uma pressão tão baixa, a oxigenação do cérebro diminui abruptamente, o raciocínio fica mais lento e é difícil manter a atenção. Imagina ter de transportar e operar equipamento pesado nessas condições. Sem falar em todos os outros efeitos fisiológicos causados pela altitude: problemas de pressão, problemas respiratórios, exposição aos raios ultravioleta e muito mais. Por isso, ninguém está autorizado a permanecer mais do que 12 horas a esta altitude. Para chegar ao topo, todos precisam estar há 24 horas em uma altitude de pelo menos 3 mil metros e se submeter a um exame médico. Quando fomos visitar as antenas, todos ganhamos pequenas latas de spray, que na verdade continham oxigênio, para ser usado regularmente para melhorar a oxigenação do sangue.
Os desafios na construção deste gigantesco observatório foram também enormes, desde a concretagem à instalação e operação do supercomputador que controla a aquisição dos dados. Cada antena, que pesa por volta 100 toneladas, fica assentada em uma base de concreto de forma triangular. Até o concreto para as bases teve tratamento especial. Como o ar lá é muito seco e frio, se o concreto fosse deixado a secar da maneira usual, a água contida nele evaporaria muito rápido e o concreto se esfacelaria facilmente. Para cada uma das mais de 60 bases, foi montada uma tenda com temperatura e umidade controladas, simulando condições mais propícias para uma secagem “normal”.
Já o computador teve de enfrentar seus problemas também. Com o ar rarefeito, os dados não podem ser guardados em discos rígidos, isso faria o cabeçote cair sobre o disco. Outra possibilidade seria guardar os dados em memória flash, como acontece nos pen drives. Mas nem isso seria seguro. Tão alto assim, a incidência de raios cósmicos é muito maior do que ao nível do mar, principalmente os de alta energia. Fatalmente um raio cósmico desses cairia sobre uma das unidades de memória e estragaria a observação inteira. A solução? Transmitir os dados – depois de correlacionados no supercomputador – para a base de operações a 3 mil metros de altitude através de 16 km de fibras ópticas.
Outro problema logístico é configurar a posição das antenas. Cada uma pesa 100 toneladas e elas se situam a distâncias entre 150 metros e 16 km uma da outra. Para alternar entre a formação compacta e a estendida, elas são transportada por um super caminhão com 28 rodas. Esse caminhão possui um “elevador” que suspende cada antena e depois a carrega para a próxima posição, em um processo que precisa de apenas quatro pessoas e leva 30 minutos, conforme quis me convencer o gerente de operações do observatório. O caminhão precisa ser pressurizado e as pessoas andam com uma pequena garrafa de oxigênio ativa o tempo todo. Aliás, cada antena tem uma unidade criogênica para manter o receptor a uma temperatura de 4 Kelvin, ou -269 graus Celsius. São dois “super” caminhões, batizados de Otto e Lore, que levam por volta de seis horas para subir até o alto da colina carregando uma antena. Considerando que deve levar por volta de uma hora para reposicionar uma única antena, mudar a configuração das antenas deve levar um ou dois dias inteiros de trabalho. Lembre-se, tudo isso a 5 mil metros de altitude!
Por tudo isso, o projeto Alma já é considerado um legado da humanidade. Ufanismos à parte, os desafios tecnológicos, logísticos e, sobretudo, políticos justificam uma afirmação dessas. E os primeiros resultados, obtidos ainda sem a totalidade das antenas, também ajudam
Nenhum comentário:
Postar um comentário